por Armando Malheiro da Silva

1. Prólogo

Longo hiato separa a terceira nota desta quarta que, ao aparecer, significa que há ainda manifesta vontade de prosseguir, neste blog da BAD, para expor ideias e suscitar o debate, mesmo que até à data não tenham chegado reacções ou comentários críticos e desafiadores de resposta pelas notas precedentes. Também é verdade que me apresento neste formato como um não-bloguista e muito mais como um “colunista” algo prolixo, capaz de se espraiar, por uma dezena ou mais de páginas, pouco preocupado que se cansem de o ler e não o leiam… Num tempo em que parece ter-se atingido um consenso universal de que a escrita pública ou publicada tem de ser lida e, para tanto, deve ajustar-se ao perfil de um leitor rápido, pouco concentrado e que não nos pode dispensar muito do seu precioso tempo… Num tempo destes, eu perfilo-me em contra-corrente e agravo o perfil ao rejeitar o compromisso bloguista de manter a postagem com assiduidade!… Não posso, não consigo ser assíduo e como não-bloguista não preciso sê-lo.

Estas breves considerações prévias justificam, muito por alto, o meu silêncio e servem para significar uma linha de continuidade. Ao ritmo possível da minha complicada vida, em que a gestão eficaz do tempo não é um atributo positivo, mas uma falha flagrante, irei aproveitar eventos, publicações e iniciativas próprias ou alheias para me posicionar no campo científico (e, subsequentemente, profissional) da CI, tal como o concebo no âmbito do projecto formativo em nível de graduação e pós-graduação da Universidade do Porto.

E mantendo a linha escolhida, aproveito, com algum atraso, para divulgar a edição no Brasil de mais um estudo feito no âmbito do iFHC, sigla de Instituto Fernando Henrique Cardoso, entidade criada em 2004 e centrada em torno de uma destacadíssima personalidade acadêmica e política brasileira – o sociólogo e ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

2. O livro/texto que serve de pretexto ao debate

A Curadora do Acervo Presidencial (e pessoal/familiar, uma vez que inclui três Fundos distintos: o FFHC, o Fundo Ruth Cardoso, antropóloga e mulher de FHC e o FFHC+RC), Danielle Ardaillon abre o livro com uma Apresentação, da qual não resisto a extrair alguns passos esclarecedores sobre a missão e objectivos do iFHC e do livro, aqui em foco,

Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais: procedimentos metodológicos adotados na organização dos documentos de Fernando Henrique Cardoso / Ana Maria de Almeida Camargo, Silvana Goulart.- São Paulo : Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007. 316 p.

Vejamo-los com atenção:

Desde o início do seu funcionamento, em 2004, o Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC) – por meio de sua diretoria – optou pelo rigor técnico para manter a integridade do acervo nele depositado. Isso, tanto para as questões relacionadas à instalação e à conservação quanto para a metodologia do tratamento arquivístico adotada.

É o que o leitor poderá comprovar ao percorrer as páginas de Tempo e circunstância. O livro se inicia com uma exposição das orientações teóricas, um texto sofisticado no qual o encadeamento das palavras reflete o próprio exercício de um pensamento lógico e exigente. Seguem-se uma nota biográfica e a descrição precisa de todo o acervo, além da exposição detalhada do modo de descrição e notação aplicado. Na última parte, várias imagens ilustram a inserção dos documentos em banco de dados específico e as formas de recuperação das informações utilizadas. (..)

Ser responsável pela gestão de um acervo desse tipo não requer forçosamente a posse de um diploma de arquivista. Saber organizá-lo e preservá-lo, sim. Por isso, amparei-me desde o final dos anos 1990, bem antes da criação do iFHC, em especialistas com as quais tive a sorte de poder contar, como as historiadoras e arquivistas Silvana Goulart e Ana Maria de Almeida Camargo. A nossa convivência vem contribuindo de maneira essencial para o amadurecimento do que entendo ser a tarefa da curadoria: preparar o futuro “desse passado”.

Para uma cientista social, a compreensão da massa documental do intelectual, sociólogo e acadêmico não apresenta grandes dificuldades; entretanto, não fossem os anos passados no Palácio do Planalto, eu não teria noção da complexidade da documentação produzida e recebida por um presidente da República. E mais: sem o aprendizado decorrente do convívio profissional, nem a consolidação de uma confiança mútua com o titular do acervo, seria bem mais difícil estabelecer as políticas de conservação e acesso. (…)

Ora a partir do momento em que o acervo de um presidente da República é dito privado e de interesse público, e que a Lei que o rege não responsabiliza financeiramente o Estado pela sua preservação regular ao longo dos anos, a família ou a instituição que o abriga deve tomar algumas decisões para lhe assegurar uma guarda correcta. Mas o que significa “guardar correctamente um acervo documental privado de presidente da República”, além de assegurar sua organização arquivística e sua informatização dentro dos padrões contemporâneos, o que já não é pouco?

Tal tarefa engloba, sem dúvida, a definição e a gestão de políticas, de comum acordo com o titular do acervo ou com o seu representante. Políticas de conservação e restauro, de orçamento e captação de recursos, de descarte, de permissão de acesso à pesquisa, de proteção da intimidade ou, ainda, de inserção de outros fundos documentais são repetidamente questionadas.

Considero Tempo e circunstância o marco fundamental do processo de preservação do acervo denominado “Presidente Fernando Henrique Cardoso”. (…)

Quero, assim, agradecer a dedicação de Silvana e Ana Maria, bem como salientar o clima de civilidade que se manteve entre a equipe de arquivistas, informatas e a curadoria. Harmonizou-se entre nós o exercício acadêmico, forçosamente lento, da escolha de critérios descritivos; harmonizaram-se as demandas da equipe e as possibilidades técnicas dos informatas responsáveis pela criação do banco de dados, assim como os pedidos da curadoria numa instituição de caráter privado a fim de que fossem cumpridos os objetivos estatutários (…)

Inúmeras discussões pontuaram  reuniões e mais reuniões de trabalho, detalhamentos, hesitações… Cada decisão arduamente tomada abria nova frente de dúvidas. Sei que o esmero profissional das autoras está satisfeito apenas por enquanto. E com razão. Uma metodologia é um work in progress haverá sempre alguma possibilidade de fignolage (zelo excessivo). (pp. 11 a 17)

Estes extratos contidos numa breve Apresentação podem causar estranheza por serem transcritos em extensão e com destaque, quando a natural expectativa dos eventuais leitores consiste em conhecer com pormenor o “miolo” do livro ou a sua novidade que as autoras decidiram, e bem, colocar no subtítulo – abordagem contextual dos arquivos pessoais. No entanto, o texto de Danielle Ardaillon esclarece tudo o que de essencial convém saber ao depararmos Tempo e circusntância e deixa claramente perceber que a grande preocupação, delicadeza e dificuldade do processo incidiram na esfera arquivística, entregue a duas reputadas arquivistas, implicadas em sucessivas reuniões e intensas discussões, tendo em vista tornar acessível o acervo, sem excessivos esmeros ou preciosismos – pas de fignolage!…

A partir de um caso concreto e específico, ou seja, com particularidades próprias, é proposta uma concepção arquivística, com aplicação a arquivos pessoais que não pode ser ignorada e é importante que seja conhecida, pelo menos, pela comunidade falante de português por esse Mundo afora. Uma concepção que tardava ser exposta por uma arquivista, a Professora Ana Maria Camargo, ávida leitora e coleccionadora de tudo quanto se tem escrito sobre Arquivos e Arquivística nas mais diversas latitudes e “escolas”, e que, finalmente, nos brinda com a sua perspectiva plasmada num texto, que se segue à Apresentação de Danielle Ardaillon, intitulado Ponto de Partida, ocupando umas densas trinta e oito páginas, sobre as quais recairão os meus comentários e reflexões. O restante do livro ou a parte técnica/instrumental, com os procedimentos a seguir no preenchimento de uma base de dados, mereceu, aliás, o título significativo de Procedimentos, a ocupar, à parte os dois Anexos (I – Glossário de documentos; e II – Glossário de tipos de eventos), umas noventa e sete páginas (!) e que muito arquivista aprecia bem mais que a prosa teórica (!). Penso que a explicação dos procedimentos, como aparece feita, em suporte papel, (se fosse num cd de demonstração da base de dados seria, certamente, útil…) ilustra o que tenho vindo a designar por paradigma custodial, patrimonialista, historicista e tecnicista, iniciado nos finais do séc. XVIII e que, embora em profunda crise, resiste e sobrevive sustentando as pretensões pseudo científicas da Arquivística e a sua consolidação profissional(izante).

A Era da Informação tornou possível e inevitável a emergência de um novo paradigma ajustado a uma epistemologia da complexidade (Edgar Morin), no qual se inscreve a concepção transdisciplinar da Ciência da Informação que vem sendo proposta, ensinada, discutida e desenvolvida na Universidade do Porto, Portugal. O assumido alinhamento com esta concepção determina os comentários que me proponho aqui fazer, e o simples reconhecimento de um condicionalismo a priori revela o meu anti-positivismo, ou seja, a minha convicção de que nas Ciências Sociais é preciso assumir, com todas as letras e consequências, a interferência subjectiva do observador/cientista, enquadrada, como nos ensinou Thomas Khun, dentro de paradigmas ou estruturados modos de ver, de interrogar, de ler, explicar e de teorizar e de aplicar um método para obter resultados, modo esse ensinado e reproduzido no seio de uma comunidade científica e profissional por algumas gerações. Eu assumo, pois, a adesão ao paradigma emergente e a defesa de uma Ciência da Informação constituída pela dinâmica transdisciplinar que entrelaça o legado teórico-prático de várias disciplinas práticas e profissionais como são a Arquivística, a Biblioteconomia, a Documentação e a Information Science (disciplina tecnológica nascidas nos EUA no final dos anos cinquenta). Assumo ainda que esta CI abrangente e emergente é uma ciência social aplicada e carece não apenas de técnicas metodológicas e de procedimentos técnicos específicos como normas de classificação, de indexação e de descrição documental, mas de um Método afinado com os requisitos e exigências da denominada investigação qualitativa, inerente ao campo complexo das Ciências Sociais. Daí a proposta do método quadripolar com seus quatro pólos (epistemológico, teórico, técnico e morfológico) e a adopção de teorias gerais, como a sistémica, conjugada de raíz com o pensamento complexo. A importância dada desde a publicação do 1º volume de Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação[1] ao conceito de sistema para melhor se descrever, analisar e compreender o fenómeno info-comunicacional tem-se traduzido em uma série de aplicações do conceito e da teoria sistémica a casos e problemas da CI, merecendo, aqui, especial destaque a minha proposta de abordagem (mais que contextual… sistémica) aos arquivos pessoais e familiares[2].

Enumero algumas das assunções básicas, para tornar clara e mais frutuosa a discussão que viso atingir com estas quartas Notas soltas. Os comentários e reflexões que se seguem são e devem ser entendidos como contributo sério para uma discussão que não convoca apenas as autoras do livro, mas os arquivistas, bibliotecários e cientistas de informação em torno de alguns pontos que me parecem cruciais.

continua:

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[1] Ver http://www.ccje.ufes.br/dci/deltci/index.htm (acedido em 26-8-2009).


[1] SILVA, Armando Malheiro da; RIBEIRO, Fernanda; RAMOS, Júlio; e REAL, Manuel – Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. Vol. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1999.

[2] SILVA, Armando Malheiro da – Arquivos familiares e pessoais: bases científicas para a aplicação do modelo sistémico e interactivo. Revista da faculdade de Letras – Ciências e Técnicas do património, Universidade do Porto, Porto, I série, 3 (2004), p. 55-84.